sexta-feira, 9 de maio de 2008

O avesso das coisas.

"Claro, quem entende mesmo olha uma roupa pelo avesso para ver se foi bem feita."
Logo depois houve uma pausa, era como se eu estivesse ouvindo um violino do Yann Tiersen e um foco de luz fortíssimo, vindo de dentro, cegasse meus olhos. O "avesso".
Queria virar tudo ao avesso, como criança curiosa à procura de algo, estava curiosa pelas verdades. Sempre nos pegamos nesses momentos de ilusão, a existência de uma verdade... Pois queria poder virar muita coisa ao avesso, o amor pelo avesso, a dor, o próprio corpo, o governo...
E por coincidência, coisa que acontece comigo há mais de 15 anos,- não sei se nomearia coincidência, mas um acaso, ou uma lei natural dos cosmos, vai saber - encontrei na livraria um livreto do Carlos Drummond de Andrade chamado "O Avesso das Coisas". Bonitinho, pequenino, amarelo, bem descarado, até pela forma com que apareceu diante dos meus olhos, num cantinho de uma estante que ficava estrategicamente colocada ao lado de onde se formam as filas para pagamento. "[aforismos]" vinha logo àbaixo do título, e seu prefácio era próprio do autor, dedicando-se a publicar suas mínimas, diferentemente daqueles que já se ocuparam em elaborar máximas.
Uma lona, um picadeiro, um corpo, movimento, equilíbrios, avessos... Não à toa devo ter me familiarizado com o termo e seu significado. A arte é o avesso.

sábado, 3 de maio de 2008

Inocentes avarias

Uma vez, chegou pra mim um cartão-postal de Barcelona, com a imagem do templo da Sagrada Família. Lindo. O remetente era um amigo de Londres que eu conheci em Curitiba. Fazia muito tempo que eu não recebia uma correspondência, e nunca tinha acontecido de receber uma de tão longe. Achei engraçado ele falar das estrelas. “A Espanha é linda, e as estrelas... para um garoto de Londres como eu!”.
Eu sempre pude ver estrelas. Na fazenda, eu deitava no terraço e olhava o céu estrelado nas noites que não tinham nuvens. Quase não havia um lugar sem estrelas no céu imenso, escuríssimo. Às vezes parecia não haver, mas se a gente olhasse bem, percebia as pequenininhas. Estrelas cadentes eu via várias numa só noite.
Mas eu ia falar mesmo do cartão-postal. O moço do meu prédio enfiou por debaixo da porta junto com as demais correspondências. Sobre a imagem, notei um rabisco horroroso de caneta. Um número. O número do meu apartamento, escrito pelo porteiro pra facilitar a separação das correspondências. Fiquei pensando, “um bendito pedaço de papel que cruza o Atlântico, passa por sabe-se lá quantas mãos e chega intacto ao objetivo de sua existência, que é ser entregue no endereço do seu destinatário, recebe um rabiscão deselegante desses na chegada”. Coisas da vida.
Foi como com o pai de um amigo, dono de um bandolim bicentenário que funcionava perfeitamente em todas as suas então raras execuções. Um dia, aquela parte que no violão se chama braço, no bandolim deve ser bracinho, de tão pequenininho, começou a descolar. O pai do meu amigo pensou em procurar um especialista, mas logo esqueceu, ou desistiu, e entocou o instrumento num caixote dentro de um quarto vazio qualquer. O marceneiro que sempre fazia os serviços da casa encontrou o velho bandolim e perguntou ao patrão porque um instrumento tão bonito estava guardado, sem ninguém tocar. O cara então mostrou a ele o defeito, ao que o marceneiro, fazendo uma cara de surpresa e dando um sorriso, respondeu:
- Isso, doutor? Mas isso aqui é fácil demais. O senhor vai ver que eu arrumo num instante, vai ficar perfeito, deixa comigo. Tudo o que é madeira, é comigo mesmo.
E o bandolim foi com o marceneiro. Uma semana depois, voltou o abençoado com o avariado instrumento nas mãos. “Pronto, doutor”. O pai do meu amigo ficou branco de susto, e diante da inocência do rapaz, nem teve ânimo de lhe dar uma bronca. É que a solução do pobre homem foi prender sete enormes pregos ao longo do bandolim.
Eu mesma já estraguei uma coisa assim. Na quinta série, meu colega, para impressionar na apresentação do seu trabalho sobre papel, reciclagem, não lembro direito o quê, trouxe pra classe pequenos pedaços de papiro egípcio, que sua mãe tinha, não sei de quando. Devia ser uma coisa rara, pela cara de espanto e de choro que ele fez quando viu que eu tinha usado um deles pra lhe escrever um bilhete, na hora do intervalo...